domingo, 27 de outubro de 2013

Frango de resort


Nunca soube de quem foi a ideia de criar galinhas num resort. A mim pouco importa, afinal, para que fique claro desde já, eu sou um frango, quase um galo. Nasci e moro neste resort de luxo, de uma praia isolada em um recanto tropical. Desde cedo me diferenciei de meus familiares. Último entre dezessete pintinhos, por muito tempo fui o menor de todos. Compensava a pouca estatura com a rapidez, bastante força, e um raciocínio acima da média.
Nasci na baixa temporada, o que significa dizer que, neste período, as crianças que apareceram por aqui eram muito pequenas e não representavam perigo; ou seja, nenhuma que estivesse em idade escolar. Esses hóspedes chegam de toda parte do país, e também do estrangeiro. Chamei a atenção de todos logo no primeiro mês de vida. Minha mãe e minhas tias estavam longe; por alguma razão nosso pai estava tendo uma discussão com elas. Melhor para nós, aproveitamos o descuido para brincar na praia. Não sabíamos nada sobre o mar, então corríamos distraídos pela areia, até mesmo entrando um pouco na água. Num instante aprendemos que a maré sobe, e ela nos surpreendeu e nos arrastou. Minhas irmãs saíram piando feito loucas para chamar os adultos. Até alguns banhistas vieram, atraídos pela balbúrdia. Não sei explicar como consegui, mas corri com tanta força que escapei da água e ainda tirei dali alguns de meus irmãos. Mas nem tudo deu certo, meu irmão mais velho nem os banhistas conseguiram resgatar. De qualquer forma, todas as galinhas ficaram muito agradecidas e me abraçaram bastante. Já o pai não falou nada, apenas ficou me olhando de cara séria. Como havia afirmado, minha fama cresceu, e mesmo os empregados do resort viam em mim um pintinho especial. Acho que eu gostava da emoção, pois depois disso mantive o hábito de correr por todos os cantos da praia, e mesmo dentro da água, mas isso nunca contei para os outros.
Mas chegou o verão, a alta temporada, e com ela o nosso tormento, crianças grandes. Incrível a sua capacidade de fazer maldades. Minha sorte é que, embora parecesse, já não era mais um pintinho. Por mais que tentassem não conseguiam me acertar nenhuma pedrada. Os empregados faziam o possível para evitar, mas os moleques pegavam os seixos brancos que enfeitavam os canteiros de flores sempre que esses se distraíam. Entre as crianças havia uma em especial, que todos diziam ser um demônio. Minhas irmãs, umas bobocas, sofreram muito com as pedradas. Algumas ficaram mancas, outras, cegas. E meus irmão menores, bem, vários não chegaram à minha idade.

Pensei num plano para acabar com a perseguição, mas tinha que convencer meus irmãos, inclusive os pequenos, a participar. Apesar dos riscos, concordaram. Além disso, precisaria de um pouco de sorte, pois tudo tinha que ocorrer na hora certa. Comecei a provocar o menino sempre que podia. Quando ele estava sozinho, passava correndo por perto para que tentasse me acertar com uma pedrada; de vez em quando até deixava passar uma de fininho, só para deixá-lo com mais raiva. Quando ele estava na piscina infantil, perto dos pais, meus irmãos os distraiam e eu vinha pela praia, dava umas bicadas em sua mão e, em seguida, voltada correndo pelo mesmo caminho. Fiz isso várias vezes, até que ele chorasse de raiva. E foi assim até chegar o momento certo. Ele estava na piscina sem os pais por perto. Os pintinhos se aproximaram e ele se fez de desentendido, cuidando com o rabo do olho a hora em que eu apareceria. Fui chegando com cara de tonto, ciscando pelo chão, até ficar bem perto. Ele se abaixou um pouco dentro da água, fingindo que não me via e, de repente, saltou na minha frente com uma pedra em cada mão. A primeira pedrada passou longe. Corri para a praia, em direção ao banco de areia com ele no meu encalço. Precisava de só mais alguns segundos. Enquanto isso, da saída para a praia, meus irmãos faziam a maior algaraviada, atraindo hóspedes, empregados e galinhas. Eu sabia que ele não ia querer desperdiçar a segunda pedra. Parou de correr para caprichar na mira enquanto cortei de volta em direção à praia. A maré alta veio com uma onda forte que o derrubou e o afundou no buraco. Os empregados, vendo o que aconteceu, correram feito doidos e o tiraram do mar, desacordado. Fui para um recanto mais vazio da praia e acompanhei a movimentação. Chegou uma ambulância para prestar socorro. Dois homens ficaram em volta do menino por um bom tempo e depois, com as caras tristes, o levaram dali. Mais tarde me disseram que seus pais foram embora do hotel. Foi quando vi, no alto de uma duna, que o pai olhava na minha direção. Na hora eu soube que, dali para frente, o assunto seria de galo para galo.

domingo, 7 de julho de 2013

Filocladenos


Quando chega o inverno Ramiro se desespera. Os dias frios e cinzentos, o excesso de umidade, as poucas horas de luz; tudo contribui para tentar diminuir seu ânimo. Todavia, o inverno e seus efeitos colaterais nada mais significariam para ele do que uma mera passagem do tempo, não fossem os filocladenos das cauchoranas.
Antes não tinha do que se queixar. Seguia a rotina sem quaisquer problemas. Acordava cedo, preparava o chimarrão e, depois de uns três ou quatro amargos, seguia para a lida. As tarefas diárias como peão de estância eram bastante simples: limpar e cuidar da bicharada e fazer o mesmo com as plantas do jardim do patrão. Até aí nada de complicado, eram serviços que fazia com rapidez e esmero; com uma mão amarrada nas costas, como se dizia. E assim foi até o dia em que o patrão resolveu trazer do estrangeiro uns bichos muito estranhos, que até achou bonitos, mas não tinham, aparentemente, qualquer serventia: as cauchoranas. Quando chegaram foi uma grande sensação.
Ramiro nunca tinha visto um daqueles, de fato, sequer supunha a sua existência. Têm o tamanho aproximado de um pônei, porém de patas mais finas e compridas. Na maior parte do tempo são quadrúpedes, mas ficam sobre as patas traseiras, quando necessário ou quando bem entendem, vá saber, como se fossem cangurus. Os machos diferem das fêmeas em alguns aspectos. O mais óbvio em relação à genitália, neste caso, semelhante aos cavalos. Sendo que o pênis da cauchorana é grotescamente maior que o de um garanhão, enquanto que a fêmea, por sua vez, tem quatro tetas. Outro aspecto é o rabo, que no macho é de pelos longos e coloridos e, na fêmea, pelado. O corpo também lembra o dos cavalos, porém mais cilíndrico, como uma salsicha bock gigante, e de pelagem macia e variada. Esta, por sinal, é diversificada como a dos cavalos, porém com mais alternância de cores. A cara também lembra a dos cavalos, só que mais acarneirada e de olhar sorumbático. As orelhas são compridas como a dos burros e, na testa, os machos têm um buraco descarnado e fundo, enquanto as fêmeas têm dois, igualmente feios. Perguntou ao capataz por que os bichos tinham aqueles buracos e recebeu como resposta que era por causa dos filocladenos, e que precisava ser assim. Não entendeu a explicação, mas ficou com pena dos bichos só de ver aqueles olhos tristes.
As cauchoranas, apesar de tamanho inferior ao dos cavalos, comem muito mais, principalmente no outono e no inverno, quando se reproduzem. Nesta época se alimentam três vezes mais que nas outras estações para dar conta de seu apetite sexual. Na primavera Ramiro entendeu, finalmente, o que são os filocladenos e por que importaram as cauchoranas. Nasceu a primeira geração de filhotes na estância, pequenas cauchoranas desengonçadas. Desenvolviam-se rapidamente, um pouco antes do verão os filocladenos cresciam em suas testas. Lindo de ver, parecido com marfim, embora seja uma guampa, mas de brilhos que variam do verde ao rosa, resultado de pequenos veios coloridos que cobrem a superfície dos chifres. No final do outono as cauchoranas já eram adultas e teriam suas aspas arrancadas. Caso esperassem mais, o chifre ficaria cinzento e sem brilho. Não entendeu por que tirar o chifre de um bicho manso, mas o capataz explicou que o patrão os venderia por uma fortuna para uns países da Ásia, onde são considerados afrodisíacos. Ramiro, mesmo sem saber o que era afrodisíaco, entendeu a parte em que o patrão ganhava uma fortuna.
Eram necessários quatro homens para aparar as guampas, três somente para segurar o bicho. Nunca tinha visto um animal sentir dor por tirar guampa, mas aqueles sentiam muita, e em seguida ficavam com os olhos tristes. Aquela noite foi inesquecível, a peonada mal conseguiu dormir. As cauchoranas gemeram sem parar e continuaram assim por mais algumas semanas. Os dias mais curtos e a chuva trouxeram o inverno de volta. Frio, mais chuva, os bichos gemendo, mesmo Ramiro, acostumado na lida campeira, sentia um desconforto que não sabia explicar. Era um trabalho sem nenhuma satisfação. Até os cavalos, companheiros na lida diária, andavam estranhos, irritadiços e corcoveantes, derrubavam os cavaleiros por qualquer comando mais ríspido. No auge do inverno as cauchoranas silenciaram ao mesmo tempo em que já vinham se alimentando como loucos. Logo em seguida começaram os machos a pular sobre as patas traseiras, correndo atrás das fêmeas, para sossegar somente na primavera.

Depois de cinco invernos Ramiro mudou-se para longe da fronteira. Comprou uma pequena gleba na serra, onde mora e tem uma roça. Gastou o resto das economias na compra de um trator usado, não queria um animal nem mesmo para montar. Enquanto não consegue tirar o sustento do trabalho na terra, arrumou serviço numa indústria das redondezas. Acorda cedo, prepara o chimarrão e, depois de uns três ou quatro amargos, vai para a avícola. Luva de borracha numa mão, cutelo na outra, passa o dia como um autômato, cortando pescoços de galinhas.