domingo, 29 de janeiro de 2012

O sorriso das vacas Jersey



O que lhe parece melhor, o cheiro ou o sabor? A carne está a uma distância calculada sobre a brasa; o sal grosso, distribuído sobre a peça conforme a experiência ordena, ajuda a aguçar o sabor e a refinar o aroma, deixando-a ainda mais atraente. Sem razão alguma, começa a pensar nos milhares de anos de experiência que determinaram a escolha do melhor gado, das carnes mais macias e saborosas. No princípio, com instrumentos rudimentares, talvez não se tivesse noção de quais eram as melhores partes. Com o passar do tempo o gado resignou-se em ser alimentado, tendo ou não ciência de que acabaria virando refeição, e o homem, em contrapartida, montou uma cadeia de valores de acordo com o corte e espécie bovina.

Uma série de pensamentos contraditórios afloram em sua cabeça. O principal era o fato de, em pleno estado criador do churrasco, esta ser para ele uma atividade furtiva. Sim, logo ele, que sempre apreciou uma boa churrascada, acabou escolhendo para sua namorada uma vegana radical. Era algo quase impossível de se imaginar. Mas, afinal, ela é muito gostosa (os prazeres da carne, sempre os prazeres da carne). Assim, o que deveria ser um deleite ao paladar, vinha com um misto de culpa embutido. E se ocorresse de ela chegar em sua casa e ainda encontrar resquícios do banquete pantagruélico, o sexo, é claro, estaria descartado. Pior, isso depois de uma longa explanação acerca das atrocidades humanas, com descritivos detalhados de como foram mortos os animais. Era normal, depois disso, ter longos períodos de abstinência, nos quais o simples pensamento provocava engulhos. Numa hora a singela imagem de uma vaca Jersey, com seu sorriso doce e olhos com delineador permanente. Logo a seguir, sua carantonha mutilada, o couro despregado da carne e os olhos esbugalhados sobre as órbitas em osso puro. Levava semanas, meses talvez, até dissociar as imagens e conseguir tratar carne fresca e bicho vivo como coisas diferentes. Nessa hora o fogo mostra o seu poder trazendo o cheiro, imbatível.
E de novo vem sua namorada apontar o quanto o vegetarianismo é superior, o quanto é socialmente mais correto por não implicar em violência contra um ser vivo. Mas ora, não é exatamente assim. Pelo menos foi o que aprendeu na escola sobre os reinos animal e vegetal. Quem pode afirmar que os vegetais não têm consciência? Claro que têm, a seu modo e de forma que não se compreende, mas têm. Sofrem de violência muito maior que os animais. Os bichos, da maneira que podem, mostram seu descontentamento quando alguém decide, por eles, que chegou sua hora de fazer parte da cadeia alimentar. Já os vegetais, coitados, nem ao menos podem se mexer. Talvez seja o caso de se alimentar de pedras.