domingo, 16 de setembro de 2012

Senjiro Matamoto



Senjiro já matou vários guerreiros em combate, mas nunca daquele jeito, e o que se revelou o deixou bastante surpreso. Seu oponente era um bom esgrimista, tão bom quanto ele, o que tornou a disputa bastante acirrada. O final da luta, quando se trata de embates desta natureza, sempre é a morte. Não foi um golpe de sorte, mas a única alternativa. O oponente atacou, Senjiro deu um passo para trás e tropeçou. Num átimo, o adversário percebeu o desequilíbrio e golpeou com violência, trazendo sua espada de cima para baixo em direção ao corpo do samurai, que, com reflexo impressionante, girou o tronco no ar e contra-atacou em um movimento de gancho, decepando a cabeça do inimigo.
O inusitado ocorreu nesta hora. De uma forma que não compreendeu, viu passar em sua frente toda a vida do adversário. Em instantes, conheceu e absorveu sua história e treinamento. Foi como se tivesse recebido, como troféu, a alma de seu oponente. A experiência o deixou ligeiramente perturbado, mas o calor da batalha não permitiu ao guerreiro maiores reflexões. Ainda naquela tarde teve mais dois enfrentamentos, vencidos com facilidade, mas da maneira convencional. Ao anoitecer recolheram os mortos e as armas e voltaram ao acampamento, onde descansariam para os próximos combates.
No dia seguinte saíram cedo para o campo de batalha, uma névoa fina parecia deixar todos os movimentos mais lentos. Um silêncio pesado dominava a floresta. Senjiro Matamoto e seus companheiros marchavam dispersos, sem contato visual. Súbito, um inimigo pula de uma árvore sobre ele, que apara o ataque levantando a espada acima da cabeça. Sem titubear, gira o corpo da esquerda à direita, levando o braço na direção do inimigo, que se aprontava para novo golpe. E o inesperado, mais uma vez, acontece. Outra cabeça que voa, mais uma alma que absorve. Talvez pelo silêncio, talvez pela névoa, desta vez ponderou sobre a responsabilidade de tornar-se detentor de uma alma tão poderosa. Contudo, o fato o deixou mais sereno e consciente de suas habilidades. Ainda no mesmo dia, entre várias baixas infligidas ao inimigo, teve oportunidade de cortar mais duas cabeças. Desta vez de forma objetiva, pois seus golpes foram desferidos com esta intenção.
Foi bastante festejado por seus companheiros e elogiado pelos superiores. Em outras circunstâncias, e tinha plena noção disso, tamanha bajulação o teria afetado. Mesmo tendo feito por merecer, permaneceu tranquilo, sem demonstrar qualquer atitude de soberba. Era um guerreiro, fazia o que precisava que ser feito, nada mais do que isto. Descansaram alguns dias e partiram para as montanhas, onde se defrontariam com a casa Yoshibawa, tida como das mais fortes. Sabia que não teriam lutas fáceis, que deveria ser pragmático e não pensar nas almas de seus oponentes. A ação é mais importante que a emoção. Seguiram seu caminho sem pressa, sabendo que toda reserva de energia seria necessária. O encontro com o adversário se deu sob o forte sol do meio-dia. As duas facções se viram frente a frente e partiram para a batalha. Como previsto, foi uma luta equilibrada. Logo em seu primeiro embate, defrontou-se com um jovem guerreiro muito hábil, que recém havia liquidado um de seus companheiros. Trocaram golpes estudados, buscando, cada um, encontrar uma brecha que permitisse o ataque derradeiro. Seu oponente era esperto e o levou a ficar de costas para uma parede de pedra, o que lhe restringia as possibilidades de movimento. Tinha que raciocinar rápido para escapar daquela limitação. Aproximou-se ainda mais da parede e ofereceu seu flanco para um golpe, que veio imediatamente. O cálculo foi acertado. Com rápida esquiva a espada do jovem inimigo atingiu a pedra, ficando trancada em uma fenda. Senjiro, prontamente, golpeou o seu braço, mas errou. Apenas acertou a espada do inimigo, que se partiu.
Mal se reposicionou, percebeu que o adversário tinha uma adaga em sua mão. Seria uma luta diferente, em que o jovem buscaria o corpo a corpo para fugir dos golpes longos da espada. Uma estratégia arriscada e que não deu certo. Em sua primeira investida, visando a garganta de Senjiro, recebeu contragolpe fulminante. O samurai dá um passo para trás e se ajoelha. Durante o movimento gira a espada sobre a cabeça e a coloca alinhada ao corpo, em seu lado direito, como se estivesse com o braço aberto. Mais uma cabeça que rola. O corpo ainda teve um pequeno movimento, como se fosse autômato, e a alma veio, mas não como das outras ocasiões. Apesar da luz do sol, viu com clareza de detalhes, e isso o afetou profundamente. E o que enxergou de diferente naquele instante foi uma mulher. Nunca tinha visto ou escutado a respeito. Sempre pensou que a guerra fosse uma arte masculina, jamais se imaginou atacando uma mulher, por mais valente e habilidosa que pudesse ser, como de fato era. Caiu prostrado de joelhos, largando a espada sobre o chão. Nem percebeu o golpe que lhe arrancou a cabeça.

domingo, 29 de janeiro de 2012

O sorriso das vacas Jersey



O que lhe parece melhor, o cheiro ou o sabor? A carne está a uma distância calculada sobre a brasa; o sal grosso, distribuído sobre a peça conforme a experiência ordena, ajuda a aguçar o sabor e a refinar o aroma, deixando-a ainda mais atraente. Sem razão alguma, começa a pensar nos milhares de anos de experiência que determinaram a escolha do melhor gado, das carnes mais macias e saborosas. No princípio, com instrumentos rudimentares, talvez não se tivesse noção de quais eram as melhores partes. Com o passar do tempo o gado resignou-se em ser alimentado, tendo ou não ciência de que acabaria virando refeição, e o homem, em contrapartida, montou uma cadeia de valores de acordo com o corte e espécie bovina.

Uma série de pensamentos contraditórios afloram em sua cabeça. O principal era o fato de, em pleno estado criador do churrasco, esta ser para ele uma atividade furtiva. Sim, logo ele, que sempre apreciou uma boa churrascada, acabou escolhendo para sua namorada uma vegana radical. Era algo quase impossível de se imaginar. Mas, afinal, ela é muito gostosa (os prazeres da carne, sempre os prazeres da carne). Assim, o que deveria ser um deleite ao paladar, vinha com um misto de culpa embutido. E se ocorresse de ela chegar em sua casa e ainda encontrar resquícios do banquete pantagruélico, o sexo, é claro, estaria descartado. Pior, isso depois de uma longa explanação acerca das atrocidades humanas, com descritivos detalhados de como foram mortos os animais. Era normal, depois disso, ter longos períodos de abstinência, nos quais o simples pensamento provocava engulhos. Numa hora a singela imagem de uma vaca Jersey, com seu sorriso doce e olhos com delineador permanente. Logo a seguir, sua carantonha mutilada, o couro despregado da carne e os olhos esbugalhados sobre as órbitas em osso puro. Levava semanas, meses talvez, até dissociar as imagens e conseguir tratar carne fresca e bicho vivo como coisas diferentes. Nessa hora o fogo mostra o seu poder trazendo o cheiro, imbatível.
E de novo vem sua namorada apontar o quanto o vegetarianismo é superior, o quanto é socialmente mais correto por não implicar em violência contra um ser vivo. Mas ora, não é exatamente assim. Pelo menos foi o que aprendeu na escola sobre os reinos animal e vegetal. Quem pode afirmar que os vegetais não têm consciência? Claro que têm, a seu modo e de forma que não se compreende, mas têm. Sofrem de violência muito maior que os animais. Os bichos, da maneira que podem, mostram seu descontentamento quando alguém decide, por eles, que chegou sua hora de fazer parte da cadeia alimentar. Já os vegetais, coitados, nem ao menos podem se mexer. Talvez seja o caso de se alimentar de pedras.